Sunday, April 22, 2007

Destino

Presenteio-vos hoje com um texto do João Vieira. Do meu querido João Vieira.

Nunca soube nem nunca quis resistir à escrita dele. O João vomita arte pelas mãos.


Destino

"Subo os degraus da escadaria imensa. Chego ao piso último e escolho seguir pela esquerda, apenas pelo aspecto menos limpo do chão, sinal que outros escolheram na sua maioria também aquela direcção. Continuo vagueando por caminhos mais percorridos, mas não havia ninguém. As marcas dos muitos sapatos que pisaram o mesmo chão eram visíveis sem grande esforço; as paredes continuavam marcadas com a sola de alguém sem maneiras; as beatas ainda fumegavam nos cinzeiros; os salpicos de água no chão à saída de uma casa de banho - possivelmente sem toalhas - estavam ainda húmidos; um jornal esquecido com a data de hoje jazia no canto; tudo o resto se assemelhava a desarrumo desculpado por uma saída por densos motivos inesperados.
Sufoco pela ideia de não ter ideia do que se passara. Saio à rua e o mesmo cenário se me apresenta, mas menos discreto. Os aromas do café e da padaria são incoerências de um registo contínuo; a pilha de jornais de hoje ainda empacotados à porta do vendedor irresponsável que adormecera e se atrasara são-no também. E tudo o resto, mas na proporção macabra do terror psicológico que mais assusta.
A vida esgotara-se com a celeridade de um relâmpago que avisa depois, com estrondo, e desta vez pediu mais do que a bateria que nos acciona: pediu o corpo.
Entretido com a agonia evidente, só mais tarde ganho consciência que escapara ao mesmo destino, mas não acredito e decido procurar alguém mais. Escolho ir aos sítios que poucos escolhem em situação normal na esperança do destino sofrer do mesmo complexo. Engano-me, ninguém escapara…
Olho perplexo para a bicicleta no meio da rua e especulo o momento em que a vida desapareceu e a inércia se equivocou, deixando o trabalho da busca de equilíbrio à gravidade: a vida sumira e no mesmo instante a bicicleta em movimento pousara apenas. O horror aumenta quando olho o relógio e me apercebo que àquela hora, no café da esquina, na terceira mesa junto à janela, estaria a rapariga que na mesma rotina aprecio romanticamente.
Paro para pensar, mas descontrolo-me cada vez mais. As especulações e as ideias do sucedido e pior, do que sucederia agora, atormentam-me. Estaria condenado a germinar no único centímetro fértil da planície? As condições necessárias à vida pareciam garantidas: água, comida, luz e tudo o mais que não adivinho até que chegue a altura. Regresso a casa e deito-me na cama. Talvez tudo seja um sonho apenas, que não passará de uma recordação esboçada quando acordar.
Acordo. Ainda sonolento e sem posse das faculdades mentais superiores inicio uma rotina inconsciente: vou à casa de banho, vou depois à cozinha comer algo rápido e sento-me no sofá. Decido ler um livro, como é hábito e lembro-me do
sonho. Sorrio sarcasticamente e pego no livro que leio durante largos minutos.
Já faz tarde, é hora de jantar, e aos sábados espera-me sempre o prato do dia do restaurante da esquina. Saio à rua e o sonho ignorado ainda lá estava: as ruas continuavam desertas… Não compreendo porque fora condenado a tal sofrimento. Pior que a vida nos ser retirada num segundo é provocar-nos o suicídio, fazer-nos sentir culpados (…)
Deixo-me cair no chão sem qualquer reacção que amoleça a queda e desenterro todas as respostas de forma lúcida e sei porque escapara: há muito que havia decidido morrer e limitara-me apenas a devaneios sem solução e a alimentar o meu corpo com a indiferença de quem rega um cacto de mês a mês. O destino não se enganara: conhecia-me profundamente…"

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